quinta-feira, 10 de novembro de 2011

“O ser e o parecer”





Era já noite cerrada, quando finalmente vislumbrou uma quinta perdida no meio do nada, como se estivesse mesmo à sua espera.
Parou o carro e saiu, o silêncio da noite era total e o brilho da lua era a única luz de que dispunha, pois a casa estava completamente às escuras. Bateu à porta mas não recebeu resposta, provavelmente, quem quer que ali vivesse, deitava-se cedo, pudera, num sítio daqueles não tinha outra alternativa.
Admirou-se de não ouvir cães ladrar, pois nas quintas isoladas geralmente há cães de guarda, mas não, tirando os ruídos característicos da floresta em redor nada mais se ouvia, nem dentro nem fora da casa.
Tornou a bater, agora com mais força, precisava mesmo de encontrar alguém o mais depressa possível. Desta vez ouviu-se como que um sussurro dentro da casa. Ele apurou o ouvido e esperou.
Ouviu-se o som de ferro a bater, como se alguém destrancasse a porta a partir do interior, uma chave girou na fechadura e finalmente a pesada porta abriu-se rangendo furiosamente e deixando entrever um sujeito atarracado com uma lanterna na mão que elevava acima da cabeça a fim de ter melhor visibilidade e com um aspecto no mínimo estranho, não teria mais que um metro e meio, a sua cara era enrugada como cabedal e no lado superior direito da testa exibia uma protuberância como se de um hematoma se tratasse e a sua boca apenas com os caninos a brilhar dava-lhe um ar sinistro.
Deu as boas noites ao homem que lhe respondeu com um trejeito e uma espécie de ronco, e como o homem ficasse ali especado sem dizer nada, ele pouco à vontade perguntou-lhe se por acaso não teria um canto onde ele se pudesse encostar só até de manhã.
O homem ficou uns segundos calado a olhá-lo, o que ainda fez com que ele se sentisse menos à vontade, por fim lá emitiu uns sons incompreensíveis e fez um sinal com a mão para que o seguisse, dando a entender que tinha percebido.
Ele entrou para uma sala que deveria ser muito maior do que parecia, pois na claridade que se espraiava da lanterna ao longo do chão, não se conseguia vislumbrar onde era a parede.
O homem fechou a porta devagar, a confirmar que estava realmente bem fechada e depois voltou-se, passou por ele sem uma palavra com a lanterna bem levantada, ele seguiu-o sempre com uma sensação desconfortável, era como um formigueiro que subia desde os pés pela coluna acima até à nuca e depois reflectia até às pontas das mãos que começavam a transpirar imenso.
Passaram daquela divisão para uma outra mais pequena que por conseguinte dava passagem para um corredor com portas de ambos os lados, seguiram, até que o homem estacou entre duas portas, rodou lentamente, fixou o olhar nele como se estivesse a tentar perscrutar na sua mente, o que o fez ficar ainda mais nervoso, indicou-lhe com o dedo uma das portas e sem dizer palavra seguiu pelo corredor adiante, ele ainda lhe perguntou por uma luz, mas o homem seguiu sem sequer se voltar, até desaparecer numa outra porta ao fundo do corredor, deixando-o envolto na escuridão total.
Ele então entrou no quarto tacteando, abriu a porta com a respiração suspensa e virou à direita sempre com as mãos a deslizar pela parede, até que tropeçou numa qualquer peça de mobiliário, foi descendo com as mãos devagar até ao tampo do que parecia ser uma mesa ou algo parecido, seguiu ao longo do tampo e encontrou um pequeno prato com um coto de vela, apalpou mais à procura de fósforos que não encontrou, só depois se lembrou que tinha um isqueiro que guardava sempre consigo, não por que fumasse, mas era um hábito que adquirira quando tinha estado na tropa, andar sempre com um isqueiro e com uma faca no bolso, desenrasca-nos em muitas situações e esta era uma delas.
Tirou o isqueiro do bolso, acendeu a vela e pôde então certificar-se de como era o espaço à sua volta. O quarto deveria ter cerca de cinco ou seis metros quadrados, e para além daquilo que ele agora via tratar-se, não de uma mesa, mas sim de uma pequena cómoda que se encontrava encostada à parede logo à entrada, apenas dispunha de uma cama de ferro antiga e um quadro com uma cena de caça, já meia desbotada, pendurado na cabeceira da cama.
Pousou a vela novamente na cómoda e inspeccionou a cama, não estava muito limpa mas para desenrascar servia muito bem.
Deitou-se em cima de um cobertor gasto que cobria a cama e pôs-se a ver a perspectiva do quarto à luz fraca da vela, mas as sombras lúgubres causadas pela chama da vela começaram a fazer-lhe pensar em coisas estranhas e resolveu apagar a vela e tentar dormir.
Foi uma noite difícil, ao principio não lhe saía da ideia o aspecto grotesco do homem, que, associado ao local e ao seu comportamento, lhe dava uma sensação de mal-estar causada sem duvida pelo receio de toda aquela situação em que agora pensava de forma mais concreta.
Adormeceu sem se aperceber, mas durante toda a noite teve pesadelos horríveis e de manhã, quando acordou, estava cansadíssimo. Primeiro não percebia onde se encontrava, mas o sol batia no pára-brisas do carro, e até conseguir coordenar ideias levou algum tempo, lembrava-se do que se passara na noite anterior, mas não conseguia compreender como adormecera naquela casa e agora acordava na berma de uma estrada de campo dentro do seu carro.
Pensou melhor se não teria sido tudo um sonho, pois de uma coisa tinha ele a certeza, tinha sido uma noite muito estranha e atribulada, demasiado até para ser real, mas lembrava-se exactamente do homem com aspecto assustador, do local isolado onde estava a casa e do quarto onde ele pensava que tinha dormido, e mais estranho ainda era que, por mais voltas que desse não encontrava nem a faca nem o isqueiro que andavam sempre consigo.
Tentou raciocinar coerentemente, pois estas coisas não acontecem, olhou à volta a ver se encontrava alguma casa por perto, não tivesse ele tido um ataque de sonambulismo e ido dormir para o carro, mas não havia sinal de nenhuma casa nas redondezas, baralhado com tudo isto resolveu seguir viagem, pois naquele momento estava completamente perdido.
Certificou-se se tinha a chave do carro e lá estava ela pendurada na ignição, olhou para o conta-quilómetros mas não se lembrava de ter reparado quantos quilómetros tinha na véspera à noite, quando foi ter (ou sonhou que foi ter) àquele local estranho.
Decidiu esquecer tudo como tendo sido uma noite mal passada para esquecer e pondo o motor em marcha engrenou uma primeira e arrancou devagar pela estrada poeirenta, tentando vislumbrar algum ponto de referência que lhe pudesse indicar onde estava.
Conduziu durante cerca de meia hora por aquela estrada até encontrar finalmente uma estrada de alcatrão, onde, sem nenhuma sinalização, optou por seguir para a direita simplesmente por instinto, conduziu durante algum tempo até que encontrou outro carro na estrada que seguia em direcção contrária, fez-lhe sinais de luzes para ver se parava e teve sorte, era uma velha camioneta de caixa aberta com um velho agricultor ao volante que parou ao seu lado e lhe perguntou se precisava de alguma coisa, ele disse que sim, que andava em viagem e se perdera, como nunca tinha andado para aqueles lados, queria saber se haveria alguma localidade por perto, o velhote indicou-lhe o percurso para a povoação mais próxima e seguiram cada um para seu lado.
Depois de mais uma hora de viagem lá chegou por fim a uma vila já com bastante movimento, este sinal de vida e a presença das pessoas, o movimento, o burburinho já quase de uma cidade, fez-lhe regressar à realidade, de que nas ultimas horas parecera andar completamente alheado.
Encostou o carro no primeiro local que encontrou e de repente lembrou-se que já não comia nada desde o almoço do dia anterior, este pensamento aguçou-lhe o apetite, saiu, trancou o carro e olhou à volta em busca de algum sítio onde pudesse comer algo, viu um pequeno café com bolos na montra e dirigiu-se rapidamente para lá, agora tinha realmente muita fome, e de tão obcecado que se dirigia para o estabelecimento, passou por uma loja de electrodomésticos que tinha aparelhos de televisão na montra e nem reparou que num dos aparelhos que estava ligado, estava a ser dada a notícia de um crime monstruoso cometido numa zona isolada da região onde um pobre homem deficiente que vivia sozinho, tinha sido estripado por alguém que depois lhe incendiou a casa e de quem a polícia procurava agora o rasto.

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